O Ministério da Defesa da Rússia anunciou o primeiro cessar-fogo sem motivação humanitária desde o começo da guerra na Ucrânia, em 24 de fevereiro. A pasta diz que vai “reduzir drasticamente a atividade militar em torno de Kiev e Tchernihiv”.
A motivação é facilitar as negociações de paz que recomeçaram em modo presencial em Istambul, com a presença do próprio presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, nesta terça (29). Mas a medida, se vingar, também dá tempo ao Kremlin para adaptar seu discurso sobre a guerra e permitir a Vladimir Putin tentar cantar vitória na criticada ação.
Os negociadores ucranianos fizeram a oferta de neutralidade militar -um dos objetivos centrais da Rússia no conflito, evitar a entrada da vizinha na Otan, a aliança militar ocidental. Demandam para tanto o fim das hostilidades e a retirada de forças russas.
Em troca, pedem garantias externas de segurança, algo bastante incerto em sua forma. A Turquia, misto de rival e aliada de Putin e simpática ao governo de Volodimir Zelenski em Kiev, é uma candidata -mas é também um membro da Otan, o que dificulta a equação.
A presença de Erdogan nas conversas no magnífico palácio otomano de Dolmabahçe, contudo, coloca um peso até aqui inédito na tratativa. O negociador-chefe russo, Vladimir Medinski, disse até que uma cúpula Putin-Zelenski poderia ocorrer se houver um texto de acordo pronto e aprovado por ambos os lados.
Os ucranianos também aceitam discutir em 15 anos o status da Crimeia, região histórica russa anexada por Putin em 2014. Não há consenso divulgado sobre o Donbass, o leste do país ocupado por separatistas pró-Rússia na guerra civil iniciada naquele mesmo ano, mas Zelenski já sinalizou aceitar o debate.
Putin sempre deixou suas opções abertas na guerra, nunca tendo admitido uma invasão completa com objetivo de ocupação, ainda que a ação sugerisse isso. Nesta terça, antes do anúncio do cessar-fogo, o ministro da Defesa da Rússia, Serguei Choigu, disse que o “objetivo principal” é a “libertação do Donbass”.
“Os principais objetivos do primeiro estágio da operação foram completados. O potencial de combate das Forças Armadas ucranianas foi significativamente reduzido, o que possibilita focar nossas atenção e esforços em atingir o objetivo principal, a libertação do Donbass”, afirmou o ministro em uma reunião que foi televisionada.
Na semana passada, as Forças Armadas russas já falavam na tal primeira etapa da guerra. Em campo, o que se viu desde então foram três movimentos. Primeiro, o desengajamento russo de cidades em torno de Kiev, que a Ucrânia clamou para si como vitórias militares, embora a vital Tchernihiv (nordeste da capital) tenha sido cercada.
Segundo, a destruição da resistência residual ucraniana em Mariupol, tornando o fumegante conjunto de ruínas um ponto central da conexão terrestre entre o Donbass e a Crimeia.
Por fim, como Choigu deixou claro, uma virada tática que visa atacar o centro das forças ucranianas junto às fronteiras do Donbass. Se houve reforços suficientes pelo sul, vindos da Crimeia, é possível que os russos tentem cercar esses combatentes -que podem fugir a oeste, para Kiev, ou tentar a sorte. Ou apenas a ameaça disso ajude a chegar a um acordo.
O exemplo de Mariupol mostra que, apesar da incompetência em vários aspectos, a ofensiva russa aposta sem muita restrição em guerra de atrito quando necessário.
O que isso significa? Que Putin pode estar buscando encerrar o conflito em termos que lhe permitam cantar uma vitória em casa. No Ocidente, serão apontadas as falhas bizarras e os problemas logísticos de sua campanha, mas se o Donbass acabar independente e unido fisicamente à Crimeia, o sonho nacionalista da Nova Rússia na costa do mar Negro estará entregue.
O problema para o russo é que a dimensão de sua guerra, com frentes múltiplas de ataques e a tentativa de cercar Kiev indicam que ele no mínimo quis a capitulação de Zelenski por coerção. Não deu certo e suas forças estavam dispersas demais para empregar um golpe definitivo.