Apesar das promessas de “redução drástica” da atividade militar russa em Kiev e Tchernihiv, autoridades da Ucrânia relataram novos ataques nesta quarta-feira (30) nos arredores das duas cidades e em outros pontos do país.
As forças russas estavam bombardeando quase todas as cidades no front que divide o território controlado pelo governo ucraniano de áreas mantidas por separatistas apoiados por Moscou na região de Donetsk, segundo o governador local.
Em um pronunciamento na TV ucraniana, Oleksii Arestovich, conselheiro do presidente Volodimir Zelenski, disse que a ação de Moscou não é um recuo, e sim um processo de transferência de forças do norte da Ucrânia para o leste. “Embora os russos estejam retirando algumas tropas de Kiev, eles ainda deixarão certa quantidade de forças para manter nossas tropas aqui”, afirmou.
O próprio Zelenski, em seu discurso noturno na terça-feira (29), disse que não levou ao pé da letra nenhuma das palavras de Moscou. “Os ucranianos não são pessoas ingênuas. Já aprenderam durante esses 34 dias de invasão e nos últimos oito anos de guerra no Donbass que a única coisa em que podem confiar é um resultado concreto.”
Nesta quarta, ele insistiu que as conversas continuam, mas que por que enquanto “são apenas palavras, nada concreto”.
A linha-dura sustentada por Moscou mesmo após alegações de trégua também vai de encontro com alegações feitas nesta quarta pelo principal negociador russo, Vladimir Medinski. Ele afirmou que Kiev havia aceitado acatar algumas das principais demandas de Vladimir Putin para acabar com a guerra: os compromissos de não entrar na Otan (aliança militar ocidental) e de abrir mão de armas nucleares.
“A Ucrânia declarou sua disposição para cumprir requisitos fundamentais em que a Rússia vem insistindo nos últimos anos”, disse Medinski. “Se essas questões forem cumpridas, a ameaça da Otan em território ucraniano será eliminada.”
Um dos mais influentes aliados do presidente Vladimir Putin, por outro lado, fez críticas diretas ao negociador, dizendo que ele se expressou incorretamente ao sugerir concessões a Kiev.
“Nós não faremos nenhuma concessão. Foi Medinski que cometeu um erro, usou frases erradas. Se você acha que ele [Putin] irá desistir o que ele começou, do jeito que nos foi colocado, isso não é verdade”, disse, em seu canal no Telegram, o ditador da Tchetchênia, Ramzan Kadirov, figura muito próxima ao Kremlin.
Mais comedido foi o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, que, antes, disse que ainda não há sinais de avanço e que nada pode ser descrito como promissor, havendo ainda um “longo período de trabalho pela frente”.
De acordo com o vice-prefeito de Kiev, Mikola Povoroznik, a capital não foi diretamente atacada nas últimas horas. “A noite passou relativamente calma, ao som de sirenes e ao som de tiros ao redor da cidade, mas não houve bombardeios na cidade em si.”
Já em Tchernihiv, o governador Viatcheslav Tchaus, disse que não houve sinais de trégua na ofensiva russa. “Acreditamos? Claro que não”, afirmou Tchaus em um canal do Telegram, referindo-se à promessa de Moscou feita após a rodada de negociações na Turquia.
O prefeito de Tchernihiv, Vladislav Atrochenko, acusou a Rússia de fazer exatamente o contrário do que prometeu. Em vez da “redução drástica”, Moscou teria intensificado os ataques contra a cidade.
“Hoje temos um ataque colossal no centro de Tchernihiv. Vinte e cinco pessoas foram feridas e agora estão em hospitais. São todos civis”, disse Atrochenko durante entrevista à CNN americana. “Então, sempre que a Rússia diz algo, isso precisa ser verificado com cuidado.”
Falando ao vivo a partir de um local destruído por ataques russos, o prefeito teve a entrevista interrompida por sons de novas explosões. Questionado se estava se sentindo seguro para continuar a entrevista, Atrochenko disse que ninguém estava seguro em Tchernihiv.
O prefeito afirmou que a Rússia deixou de fazer ataques de alta precisão contra alvos estratégicos e agora atira às cegas e atinge alvos civis. Segundo ele, também houve ataques contra Nijin que destruíram “bibliotecas, shopping centers e muitos edifícios residenciais”, enquanto em Tchernihiv não há “eletricidade, água, aquecimento e gás.”
Ainda sobre a cidade, a comissária de direitos humanos do Parlamento da Ucrânia, Liudmila Denisova, divulgou uma foto do que seria, segundo ela, um foguete russo, não detonado, lançado contra uma escola infantil -a imagem mostra o projétil afundado no solo de areia do parque de brinquedos do local.
No oeste da Ucrânia, o governador de Khmelnitski, Serhii Hamalii, disse que instalações industriais foram alvo de ao menos três ataques russos durante a noite. De acordo com as informações, que não puderam ser checadas de maneira independente, houve incêndios localizados e equipes de emergência faziam verificações para determinar se houve vítimas.
Na mesma região, o prefeito de Starokostiantiniv disse que um ataque russo causou danos significativos a um aeroporto e destruiu pontos estratégicos de armazenamento de combustível.
Arestovich, conselheiro de Zelenski, também relatou que os combates de rua em Mariupol foram intensos e que metade da cidade, localizada em posição estratégica para os interesses de Moscou, foi tomada por forças russas.
Na região de Mikolaiv, alvo de um ataque que deixou 12 mortos e um buraco provocado por um míssil no prédio da administração regional na terça, o governador Vitalii Kim disse que os combates seguem em praticamente todo o território e, em especial, ao redor de Kherson.
“Não estamos relaxando, estamos trabalhando para fortalecer nossa capacidade de defesa”, disse Kim.
Ainda segundo a comissária ucraniana Liudmila Denisova, o edifício do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) em Mariupol foi alvo de bombardeios da Rússia.
A Cruz Vermelha não confirmou a informação -um porta-voz da entidade, que deixou de atuar na cidade há duas semanas por falta de condições operacionais, afirmou à agência France-Presse que não tem acesso a essa informação.
O governador regional de Lugansk, Serhii Gaidai, disse em um canal no Telegram que a cidade de Lisichansk, no leste do país, foi alvo de artilharia pesada da Rússia na manhã desta quarta.
“Vários arranha-céus foram danificados. As informações sobre vítimas estão sendo confirmadas”, disse Gaidai. “Muitos prédios desabaram. Equipes de resgate estão tentando salvar os que ainda estão vivos.”
Enquanto os ataques seguem e as negociações continuam longe de decretar o fim da guerra, não para de crescer o número de refugiados que deixam a Ucrânia.
Após mais de um mês de conflito, o número de pessoas que fugiram do país chegou a 4 milhões, segundo o Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados). A cifra representa cerca de 9% do total da população ucraniana, estimada em 44 milhões de pessoas.
A gravidade da crise migratória, considerada a maior desde a Segunda Guerra Mundial, é evidenciada se levados em conta os mais de 6,5 milhões de pessoas que, ainda segundo a ONU, tiveram de se deslocar internamente para sair de regiões ameaçadas. Ou seja: a cada quatro habitantes da Ucrânia, ao menos um já teve de deixar sua casa.
O fluxo diário de pessoas que deixam o país, no entanto, vem diminuindo. A União Europeia (UE) informou que, após um pico em que seus países-membros, juntos, chegaram a receber 100 mil refugiados ucranianos por dia, agora a média caiu para cerca de 40 mil.
Ainda segundo a ONU, a Rússia já bombardeou 50 hospitais no país, além de escolas e casas de civis.
Na última semana, as forças ucranianas celebraram o que foram consideradas vitórias no conflito. Cidades e vilarejos nos arredores de Kiev foram recapturados, o cerco à cidade de Sumi foi quebrado e os russos foram repelidos no sudoeste.
O que alguns analistas chamam de uma mudança no fluxo da guerra, porém, foi visto por outros como uma consequência da mudança de estratégia russa. Moscou está concentrando esforços na expansão do território controlado pelos separatistas na porção leste da Ucrânia.
Para os Estados Unidos, a promessa russa de “redução drástica” corrobora essa tese. O Pentágono descreveu a medida mais como um reposicionamento de tropas do que uma retirada.
“Todos nós devemos estar preparados para assistir a uma grande ofensiva contra outras áreas da Ucrânia”, disse o porta-voz da Defesa americana, John Kirby. “Isso não significa que a ameaça a Kiev acabou.”
Para os serviços de inteligência do Reino Unido, Moscou está sendo forçada a retirar tropas dos arredores da capital ucraniana para a Rússia e para a Belarus. O “recuo” seria uma estratégia para reabastecer e se organizar depois de sofrer grandes perdas, e depois dele a Rússia provavelmente compensará sua capacidade reduzida de manobras terrestres com artilharia em massa e ataques com mísseis.