“Espera, isso é real?”. O relatório de tendências Accenture life trends 2025 prevê um crescimento da desconfiança do público em relação a empresas que utilizam inteligência artificial (IA).
No Brasil, esse já é um fator considerado por algumas empresas. A adoção da tecnologia de forma pouco planejada pode gerar erros e ameaçar a reputação dos negócios.
“Embora o relatório da Accenture não aborde diretamente o Brasil, a preocupação global sinaliza a necessidade de empresas brasileiras, especialmente aquelas voltadas ao consumidor, repensarem o uso da IA“, avalia o CEO da empresa de tecnologia 87Labs, Thiago da Cruz.
Uma pesquisa do CGI.br mostrou que 41% das grandes empresas 24% das médias empresas do país já usam IA, mas muitas ainda precisam de diretrizes claras.
Além disso, um estudo da Bain & Company indicou que 88% das empresas brasileiras planejam aumentar investimentos em IA generativa em 2024. A tecnologia é capaz de criar imagens, textos, vídeos e áudios de forma automática e está no centro das preocupações do relatório da Accenture.
O conteúdo gerado por esse tipo de IA está cada vez mais presente nas redes sociais e em plataformas de e-commerce. E isto pode pesar na escolha dos consumidores por uma marca.
O número de participantes da pesquisa da Accenture que responderam que a confiança é um fator importante quando vão se relacionar com uma marca foi de 62%, ante 56% no ano passado.
“As empresas precisam entender que a confiança será a moeda mais valiosa nesse novo cenário. Não basta ter a melhor tecnologia – é preciso usá-la de forma ética e transparente”, explica Alan Nicolas, fundador da comunidade Lendár[IA], ecossistema educacional de soluções em IA.
A situação se agrava quando se leva em conta que modelos de IA frequentemente produzem resultados incorretos ou imprecisos, já que eles sempre acreditam em suas próprias afirmações.
Isto também acontece com imagens, quando conteúdos gerados por computador usados em anúncios representam as qualidades e detalhes de um produto de forma equivocada, por exemplo. Há casos, ainda, de vídeos falsos de celebridades promovendo determinados produtos, feitos a partir da tecnologia deep-fake.
Outra atividade cada vez mais comum é a divulgação de anúncios falsos feitos com IA por golpistas. Com a coleta de dados da presença online do usuário, esses anúncios podem ser extremamente personalizados e chamar muita atenção de possíveis vítimas. Além disso, IA também pode ser usada para produzir comentários sobre produtos.
“Imagine só: uma empresa que utiliza IA para gerar avaliações positivas falsas para seus produtos. No começo, pode até parecer uma boa estratégia para atrair clientes. Mas, cara, a casa cai!“, comenta Nicolas.
Como utilizar IA mantendo a confiança do público?
O risco de queda de confiança do público não é um sinal para que as empresas parem de utilizar IA. Na realidade, todo o potencial da tecnologia ainda pode e deve ser explorado, defende Nicolas.
O mais importante é ter pessoas capacitadas, planejamento e diretrizes claras sobre o uso da tecnologia. A transparência é um dos principais fatores para construir confiança. Nesse contexto, a Accenture vê uma necessidade crescente de que empresas sinalizem a autenticidade de seus conteúdos para construir confiança.
Uma pesquisa da Getty Images com pessoas de 25 países confirma essa preocupação. Ela constatou que 90% dos consumidores querem saber se uma imagem foi gerada por IA e 87% deles valorizam a autenticidade de imagens. Ainda, 76% dos pesquisados afirmaram que acham cada vez mais difícil saber se uma imagem foi produzida por IA.
Para Nicolas, práticas de transparência em relação ao uso da tecnologia são importantes, mas precisam ser bem pensadas, sem colocar a logo da IA em todos os lugares ou usar termos técnicos que o cliente não vai entender. A chave seria usar uma linguagem mais acessível, do cotidiano.
“Foca na simplicidade e nos benefícios reais! Em vez de lançar um ‘usamos IA
para personalizar sua experiência’, que tal algo tipo: ‘nosso sistema inteligente analisa seu perfil para te mostrar produtos que você realmente curte e economizar seu tempo’?”
Entre as possíveis ferramentas para ganhar a confiança do público estão estratégias como o selo de compra verificada e moderação, automática e manual, de avaliações de produtos, para evitar conteúdo falso, afirma Cruz.
O executivo ressalta que a própria IA pode ser usada em processos que ajudam a promover a confiança das empresas, como o uso da tecnologia para coletar dados de governança e evitar problemas como o greenwashing, por exemplo.
Para Nicolas, é essencial manter um equilíbrio entre a eficiência da inteligência artificial e o toque humano. “É tentador usar a IA para automatizar tudo, mas será que isso realmente beneficia a experiência do cliente?”, questiona.
O especialista destaca que as pessoas buscam conexões reais e autênticas e a IA, se usada de forma indiscriminada, pode gerar interações frias e impessoais.
“Pense naquelas empresas que usam chatbots para responder a todas as solicitações dos clientes. É prático? Sim! Mas e se a pessoa tiver uma dúvida mais complexa ou precisar de um atendimento mais personalizado? A frustração pode levar à perda de clientes e ao sentimento de que a empresa não se importa realmente com eles”, ressalta.
Em cenário incerto, empresas podem criar suas diretrizes, mas regulamentação é necessária
No Brasil, o otimismo com a IA é evidente: 66% das pessoas demonstram entusiasmo com a tecnologia, segundo um levantamento do Instituto Ideia. Por outro lado, 73% delas já pedem regulamentação. “E isso não é contraditório – é um sinal de maturidade. Queremos inovação, mas com responsabilidade”, avalia Nicolas.
“Precisamos de três ações imediatas: regulamentação inteligente que proteja sem impedir inovação, investimento massivo em educação digital, e compromisso das empresas com transparência no uso de IA“, afirma o especialista.
Para evitar problemas, as empresas precisam trabalhar com funcionários capacitados, fazer uma análise prévia de riscos e ter clareza sobre as finalidades e recursos necessários para o uso de IA, além de criar diretrizes de governança que vão guiar esse uso no ambiente corporativo.
Sem esse planejamento, o negócio pode enfrentar problemas jurídicos relacionados ao uso inadequado de informações confidenciais e dados pessoais, discriminação e erros de informação cometidos pela própria IA, destaca a sócia de Tecnologia e Inovação da TozziniFreire Advogados, Carla Battilana.
Já existem recursos que podem guiar a política da empresa em relação ao uso de IA. Ferramentas como o Glaze e Nightshade evitam o uso de conteúdos não autorizados em modelos de IA, por exemplo.
Também já há movimentos na direção de estabelecer diretrizes para o uso da tecnologia, destaca a CEO da Melo Consultoria, Andréa Melo. Uma delas é a norma 42001 da ISO (International Organization for Standardization), que indica práticas de governança em empresas para lidar com potenciais riscos da tecnologia.
O AI Act, regulamentação da União Europeia sobre o uso da tecnologia, também pode ser usado como base para a adequação das empresas para o novo cenário.
Mesmo com algumas normas já presentes, a falta de regulamentação ainda é um problema, especialmente no Brasil. Mas já há movimentos no país para mudar esse cenário. “Estamos vendo um movimento crescente e estruturado para estabelecer boas práticas no uso de IA por empresas brasileiras”, destaca Nicolas.
No setor financeiro, por exemplo, a ANBIMA (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) já lançou um guia pioneiro com orientações específicas. Enquanto isso, no campo regulatório, há o projeto de Lei 2338/2023 em tramitação no Senado, que busca estabelecer um marco legal para a IA.
Outra organização que também está se adiantando nesse sentido é a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que já emitiu orientações e diretrizes para o uso de IA pelos escritórios de advocacia.
“Então aos poucos vão sendo criadas boas práticas e orientações, mas a gente ainda não tem regulamentação sobre o tema, que é bastante complexo de se discutir. Então, mesmo quando a gente fala do projeto de lei, não é algo tão simples, tem diversos pontos de discussão, mas com certeza está no radar dos legisladores e dos profissionais de direito como um todo”, destaca Battilana.