Não houve outro tema que chamasse tanto a atenção dos noticiários internacionais na última semana quanto a eleição presidencial nos EUA, que culminou na vitória de Donald Trump. O republicano retornará à Casa Branca a partir de janeiro de 2025 e o espaço político mundial deve sentir os efeitos de seu triunfo em diferentes camadas.
Quando o assunto é Trump e o desdobramento da geopolítica, a relação com a China – atualmente a 2ª maior economia mundial – é o principal foco de interesse. Para os especialistas, as barreiras que já existem entre os dois países só irão se intensificar de forma mais explícita, afetando também os aliados mais próximos dos chineses.
“Devemos ter um jogo de “morde e assopra” ao longo do mandato, pois a China é grande demais para não se fazer negócio, mas indigesta demais para as relações de poder de longo prazo, então esse equilíbrio vai se dar concessões e retaliações ao longo do caminho”, avaliou Idean Alves, planejador financeiro e especialista em mercado de capitais.
Na avaliação de Eduardo Grin, cientista político da FGV (Fundação Getúlio Vargas), a identificação da China como ameaça pode não ser muito diferente até de como é vista no governo de Joe Biden, mas Trump é “muito mais estridente” e faz questão de vocalizar esse enfrentamento.
“Trump pode ter discordâncias em relação à China no que diz respeito ao econômico, mas ele não está nem aí, se a China, por exemplo, invadir Taiwan, que pode ser uma consequência, porque Trump é um isolacionista. Ele não tem compreensão multilateral do mundo e esse é um outro efeito que vai acontecer, que é ampliar o isolacionismo americano”, afirmou o cientista político.
Grin reforçou também que, no decorrer do novo mandato de Trump, deve-se observar uma ordem internacional mais desorganizada e anárquica, dando espaço a projetos autoritários como o do presidente russo, Vladimir Putin.
“No mundo mais pacífico, de relações mais abertas entre os países, um mundo pautado pelo multilateralismo, pelo respeito dos direitos humanos, pelo respeito à democracia, tudo isso vai estar em cheque a partir do momento em que Trump voltar ao poder”, afirmou Grin.
Primeira tarefa de Trump: arrumar a casa
O novo presidente eleito deve voltar ao poder, como sempre acontece em cada nova gestão, fazendo mudanças que lhe ajudem a governar a seu modo. A primeira delas já foi feita, com a escolha de Susie Wiles como sua chefe de gabinete do governo Trumpista, a primeira mulher a ocupar o cargo.
Para Iden Alves, os primeiros itens na lista de tarefas do republicano devem ser de otimização dentro dos EUA, com a política econômica, fiscal e incentivos.
“Depois vai fortalecer laços comerciais com os principais parceiros, em detrimento provavelmente dos países subdesenvolvidos, em especial dos que tenham alinhamento com a esquerda como a China em especial, e de governos que batam de frente com a sua visão política, em um tom no melhor estilo ‘não precisamos de vocês'”, projetou o especialista.
Eduardo Grin apontou que mesmo diante da possibilidade de elevação da inflação, Trump deve caminhar para resgatar a indústria dos EUA, pois ele precisa oferecer aumento de emprego e da percepção de melhora na economia.
“No curto prazo, Trump poderá ser bem sucedido, mas acho que esse é um caminho que no médio prazo pode custar muito, dado que isso pode significar um aumento de ajuda nos EUA”, disse.
Na esteira das restrições econômicas prometidas por Trump, Grin lembrou que mesmo durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) – que se mostra explicitamente aliado aos ideais políticos do republicano – o Brasil já sofria com barreiras por parte dos EUA no comércio de algodão, açúcar e soja.
“O nosso agro é muito mais competitivo do que o americano, e os rednecks que apoiam o Trump no interior dos EUA são muito dependentes da economia rural. Então acho que nós vamos ser vítimas dessas barreiras protecionistas”, afirmou
Para o cientista político, esse mesmo cenário pode se replicar nas economias que integram a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) da Europa, por exemplo, na medida em que Trump identifique que esses países podem ter algum tipo de discordância em relação às suas políticas internacionais.
“Especificamente é o caso da França e da Alemanha, que foi inclusive contra quem ele se indispôs no seu primeiro mandato. A Alemanha agora enfrenta uma situação nova que não tinha lá atrás, que é o Putin e a necessidade de ter o gás russo e como Putin e Trump deverão ter algum tipo de aliança no sentido de avançar sobre a democracia de internacional, reduzir o tamanho da cooperação internacional, não sei se a Alemanha seria tão oposta a Trump como foi na primeira mandato com a Angela Merkel”, ponderou o cientista.
O Brasil e a relação com Lula
Nos últimos dias da corrida eleitoral, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em entrevista a um veículo de notícias, respondeu que a vitória de Kamala Harris seria “melhor para a democracia”. Com a volta de Trump, o cientista da FGV acredita que a defesa de Lula pode lhe gerar um custo.
“Não sou daqueles que acham que o Lula deveria ter ficado quieto, porque a declaração dele se dá primeiro em retribuição ao apoio de Biden. Lula, como outros líderes políticos mundo afora, está muito preocupado com o retrocesso democrático, e a declaração dele foi dizer a defesa da democracia”, enfatizou Grin.
Mas, embora o Brasil possa sofrer retaliações econômicas, a relação entre os dois países tem sido pragmática, pelo interesse de ambos em colaborar “vendendo o Brasil como o maior parceiro latino-americano dos EUA”, explicou.
Idean Alves compartilha da mesma avaliação e afirmou que, apesar de “um não morrer de ‘amores’ pelo outro”, os dois chefes de Estado precisam fazer o melhor por suas nações.
“Então uma hora vão ter que se entender, só que por conta dessas divergências iniciais isso deve demorar um pouco mais, o que no jogo do poder e da economia significa dizer que o Brasil não será um dos primeiros escolhidos do time com relações comerciais crescentes com os EUA, pelo contrário, vai ter que se provar para melhorar a relação de poder e de comércio entre eles”, finalizou.
As dificuldades de relacionamento entre o governo de Trump e o de Lula, no campo diplomático, pode ser, por exemplo, com a agenda ambiental, o novo presidente norte-americano não compartilha do entendimento sobre a mudança climática.