Política

Salvadorenhos protestam contra o Bitcoin como moeda oficial

El Salvador se tornou o primeiro país do mundo a adotar o Bitcoin como moeda oficial do país. Moradores reclamam de confusão com a carteira do governo

A curiosidade atiçou Javier Cortez em uma tarde de sexta-feira, enquanto trabalhava no centro de San Salvador. Ele vendia capas para celular em sua tenda na capital de El Salvador quando resolveu baixar o Chivo, carteira eletrônica para bitcoins do país.

“Não sei como essa moeda se forma, quem a distribui, nem nada disso”, conta Cortez, que é membro da Coordenação Nacional de Vendedores do país.

Ainda assim, ele -como os demais salvadorenhos fazem há dois meses- vem tentando se adaptar à novidade monetária desde que a pequena e violenta nação centroamericana de 6,5 milhões de habitantes regulamentou o bitcoin como moeda oficial ao lado do dólar, adotado em 2001.

El Salvador tornou-se, em 7 de setembro, o primeiro país do mundo a adotar oficialmente a criptomoeda. A ideia apareceu publicamente em 5 de junho, quando o presidente do país, Nayib Bukele, anunciou a intenção em um vídeo enviado à conferência Bitcoin 2021, realizada na Flórida, nos Estados Unidos.

Apenas quatro dias depois, o projeto foi aprovado pela Assembleia Legislativa, e em três meses passou a fazer parte do dia a dia da população.

Mesmo com a popularidade de Bukele -pesquisas locais do início de setembro indicavam que ele tinha uma taxa de aprovação de quase 85%, o que o torna o presidente mais bem avaliado da América Latina-, a transição para a moeda digital não foi pacífica. Às vésperas de entrar em vigor, uma pesquisa da Universidade Centro-Americana apontava que 65,2% da população não concordava com a ideia de o governo direcionar recursos para implementar a novidade.

As últimas semanas foram de protestos no país, os maiores desde quando o mandatário chegou ao poder, em 2019. “Bitcoin é contra os pobres”, diziam manifestantes que saíram às ruas em 30 de setembro. Cerca de metade da população do país vive abaixo da linha da pobreza. No dia 17 de outubro, com cartazes onde se liam as frases “Bitcoin, a fraude” e “Não à ditadura”, salvadorenhos sairam novamente às ruas.

Três dias depois de implementar a moeda, Bukele anunciou que o Chivo –que em espanhol significa bode, mas é também uma gíria local para se referir a algo bonito– já tinha 3 milhões de usuários. Quase a metade dos salvadorenhos já adotara a carteira eletrônica, segundo o governo.

“Bukele tem mantido um esforço para ser o presidente mais cool da América Latina”, diz o relações públicas Rafael Moreira, usando a gíria que o próprio mandatário utilizou em uma publicação no Twitter em junho de 2019.

Foi também na rede social, onde se apresenta como o “imperador de El Salvador”, uma ironia com seus opositores, que Bukele lançou uma série de tuítes em que mandava seus ministros demitirem funcionários da gestão anterior, em uma de suas primeiras ações como presidente.

Ali ele interage com seus 3 milhões de seguidores e já deu ordens à sua equipe com base em reclamações dos usuários.

Em agosto, Moreira, que também presta apoio técnico à CNTS (Confederação Nacional de Trabalhadores Salvadorenhos), vinha organizando manifestações contra a medida a cada domingo na praça Cívica, no centro da capital San Salvador.

“Todos os sistemas vêm mudando, e o bitcoin é mais um. Até aí tudo bem, porque é como se dinamiza a economia. Mas consideramos o ponto de vista do salvadorenho comum, do pequeno comerciante”, diz Moreira.

Especialmente para esse tipo de profissional, a medida pode ser ruim, defende. A lei determina que todo agente econômico deverá aceitar o bitcoin como forma de pagamento.

Apesar de a lei também excluir da obrigatoriedade quem “por fato notório e de maneira evidente” não tiver acesso à tecnologia para transações, o assunto segue nebuloso aos salvadorenhos. Não há sanções reguladas para quem não aceitar a criptomoeda.

Muitos, como Cortez e seus amigos, tiveram dificuldade em lidar com o aplicativo e com as variações da moeda. O governo Bukele deu US$ 30 (R$ 155,10, na cotação da época) a quem baixasse o Chivo. Mas no dia seguinte, o aplicativo indicava US$ 26,71 na carteira de criptomoedas do usuário que não tivesse movimentado um tostão.

No dia 7 de setembro, o bitcoin desvalorizou quase 11%. Um dia depois, aumentou 1,13%, e os dias seguintes foram de altos e baixos. Em 16 de setembro, estava 7,6% mais baixo do que na véspera do dia em que a lei do bitcoin entrou em vigor em El Salvador. As últimas semanas foram de crescimento.

A instabilidade da moeda é um dos maiores temores dos salvadorenhos entrevistados para a reportagem. Desde janeiro de 2020, o ativo teve valorização de quase 700%. Mas houve quedas e altas bruscas no meio do caminho.

Entre abril e junho deste ano, um bitcoin chegou a valer mais de R$ 363 mil e, dois meses depois, estava valendo menos de R$ 156 mil. Nesta sexta-feira (12), era cotado em mais de R$ 343 mil, 41% acima do registrado no dia 8 de setembro.

Parte da comunidade do criptoativo, porém, viu a medida com bons olhos. Entre os benefícios citados estariam o investimento dos entusiastas da moeda no país e a facilidade para fazer remessas internacionais. Mais de 3 milhões de salvadorenhos vivem no exterior, principalmente nos Estados Unidos, e o dinheiro enviado por eles a familiares é uma importante fonte de recursos para a economia local.

O economista Cesar Villalona, dirigente da associação Profissionais pela Transformação de El Salvador (Proes), teme que a nova moeda paralise a atividade econômica do país ao diminuir a capacidade de importação de bens de capital, por exemplo.

“Um empresário salvadorenho que quer trazer um veículo do Japão não vai pagar em bitcoin, porque o japonês não tem que aceitar a moeda”, afirma. “Não somos um país produtor de maquinário.”

Queda na produção e no lucro das empresas, diz, poderiam levar a desemprego e maior inadimplência. “E, se a economia contrai, cai a arrecadação fiscal”, completa.

Ele lembra que o banco central de El Salvador perdeu a capacidade de emitir moedas desde a dolarização da economia. “A entidade manteve duas funções: manter estatísticas econômicas e administrar uma reserva de liquidez.”

Um dos motivos ventilados por Villalona para a adoção da criptomoeda é o desejo de agradar aos setores mais endinheirados do país. “Para pessoas ricas pode não ser um problema, porque elas estão jogando em um cassino. Um ganha e outro perde, para isso serve o bitcoin hoje. Para a especulação.”

Ricardo Castaneda, economista do Icefi (Instituto Centro-Americano de Estudos Fiscais), diz temer pelas contas públicas. Ele lembra que a nova lei determina que “todas as contribuições tributárias poderão ser pagas em bitcoin”.

“Se o governo decide não convertê-los imediatamente em dólares, pode ser que a arrecadação aumente, mas pode ser que diminua”, diz Castaneda, referindo-se à característica volátil da moeda. “No contexto de El Salvador, que tem arrecadação baixa, é um risco muito alto.”

Muitas razões podem estar por trás dessa decisão, opina. Uma delas é a relação com os Estados Unidos, que na época da aprovação da lei estava estremecida pela destituição de cinco juízes da Suprema Corte pela Assembleia Legislativa do país, de maioria governista. Os magistrados haviam tomado medidas desfavoráveis ao presidente. Na época, o procurador-geral também foi removido do cargo.

“Havia quem opinasse que poderia haver algum tipo de sanção ao governo salvadorenho que incluiria o tema das remessas. Então pode ter sido uma opção para prevenir os efeitos da sanção, já que agora há outro mecanismo pelo qual enviá-las”, afirma Castaneda.

“Para mim, a implementação da bitcoin é como se jogar de um avião sem paraquedas e sem um especialista. Pode ser que você caia de pé e todos te aplaudam pela façanha, mas o mais provável é que tenha custos muito altos”, diz.

O FMI (Fundo Monetário Internacional) tampouco viu a medida com bons olhos. Em junho, o porta-voz do órgão, Gerry Rice afirmou que “a adoção do bitcoin como moeda oficial levanta uma série de problemas macroeconômicos, financeiros e legais que requerem uma análise muito cuidadosa”.

Já o advogado Julio Cesar Navas, assessor da Sociedade de Comerciantes e Industriais Salvadorenhos, diz que a alta da moeda animou seus amigos a baixar a carteira digital. “Viram que é um mercado que tem suas vantagens”, afirma. Ele definiu a ferramenta como “mais uma possibilidade que as pessoas têm para adquirir bens e serviços, além de acessar mercados internacionais”.

“No início há medo e também barreiras ideológicas”, diz Navas. “Um mês depois, o dólar não desapareceu de El Salvador, os salários não estão sendo pagos em bitcoins, o comércio segue aceitando dólares e bitcoins.”

A valorização da moeda fez os US$ 30 do comerciante Javier Cortez, do início do texto, chegarem a US$ 37,78 nesta sexta. “O país está um caos, convulsionado”, afirmou ele na metade de outubro, quando o país passava por prostestos. Ele diz não estar participando das manifestações por conta do clima autoritário na nação.

A maioria de seus colegas apenas sacou o dinheiro da carteira digital e não a utiliza mais. Durante as vendas, ninguém pede para pagar em bitcoins, conta. Ou seja, “não mudou nada”, em suas palavras.

Isso não o faz ficar neutro em relação à medida. “Sou contra desde o ponto de vista do investimento que o governo fez para implementá-la”, diz. Em 6 de setembro, véspera do dia em que o bitcoin virou uma moeda no país, Bukele anunciou a compra de 200 bitcoins (cerca de R$ 54,460 milhões, na cotação da época).

“As pessoas estão confusas. Deveriam ter educado a população para utilizar o bitcoin, mas impuseram essa lei da noite para a manhã”, diz Cortez.