De um lado, aumento da inflação dos mais pobres, famílias em busca de restos de alimentos no lixo, novos empregos com salários menores. Do outro, maior concentração de renda, aumento no número de bilionários e recordes de desempenho nos mercados internacionais.
Os dois cenários antagônicos marcam a distância de renda, desempenho e oportunidades entre a base e o topo da pirâmide de renda, um fosso que conseguiu crescer ainda mais durante a pandemia do novo coronavírus. No meio do ano, o Credit Suisse divulgou que a desigualdade havia crescido em 2020 e o 1% mais rico passou a concentrar metade da riqueza do país.
Nesse quesito, o Brasil só ficou atrás da Rússia, em um ranking de dez países. Um ano antes, os brasileiros mais ricos detinham 46,9% das riquezas, com a pandemia esse percentual subiu para 49,6%.
Um movimento semelhante ocorreu na maioria dos países analisados pela instituição. A fatia concentrada pelo topo caiu apenas na França e na Alemanha.
Além disso, mesmo com os desafios impostos pela crise da pandemia e suas consequências na perda de fôlego da economia brasileira, o país ganhou 40 novos representantes na lista de bilionários de 2021 da revista Forbes. A publicação atribuiu esse aumento ao aquecimento do mercado de capitais, que favoreceu os mais ricos.
“Durante a pandemia, o topo da renda conseguiu lucrar, apesar do momento de pessimismo econômico. Uma parte dessas pessoas sentiu a valorização do mercado de capitais, que muitas vezes tem um desempenho descolado da realidade concreta”, afirma Jefferson Nascimento, coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil.
Enquanto boa parte dos trabalhadores viu o mercado de trabalho derreter e passou a depender de programas temporários de transferência de recursos, como o auxílio emergencial, gigantes do varejo, empresas de e-commerce e farmacêuticas aumentaram seus lucros no período, o que se refletiu na valorização dos ativos dos bilionários.
Jeff Bezos, presidente da Amazon, é mais rico hoje do que antes da pandemia, lembra Nascimento. “Como vivemos um período de baixa de juros no mundo inteiro, isso tem consequência a elevação do valor de ações”, afirma Matias Cardomingo, pesquisador do Made/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades).
“Vimos Bolsas subindo no mundo todo, com incentivos monetários. Passado o primeiro choque, quando tudo caiu, a recuperação não tardou a acontecer para os ricos.” Além disso, parte dos mais ricos está ligada a setores que não foram diretamente afetados pela dinâmica da pandemia, diz o pesquisador.
“Os serviços de maior qualificação tiveram até uma demanda aumentada, como consultoria estratégica e ensino a distância, e isso se opõe ao que estava acontecendo na base, nos serviços com mão de obra mais barata.”
Nascimento acrescenta que, além do investimento em áreas “oportunistas”, outro motivo para o aumento da riqueza dos mais ricos tem relação com a maior facilidade de diversificação de investimentos e negócios que os donos das grandes fortunas têm, o que acaba funcionando como um colchão de proteção.
“Considerando-se a fortuna dos bilionários medida pela Forbes em fevereiro de 2020 como base, a riqueza dos mais abonados caiu de 100% para 70% no começo da pandemia, em março e abril do ano passado. Mas em novembro de 2020, eles já tinham recuperado o que perderam, enquanto a maior parte das pessoas estava com medo da Covid-19 e ainda nem tínhamos vacinas.”
O relatório publicado pela Oxfam no começo do ano apontou que a pandemia gerou nove novos bilionários ligados ao setor farmacêutico, alguns deles tinham relação com as empresas que produziram vacinas contra a Covid-19.
Como parte do desenvolvimento dos imunizantes contou com fundos públicos, para pesquisas e apoio de capital, é como se os governos tivessem colaborado indiretamente para fazer dessas pessoas ainda mais ricas.
Ao mesmo tempo, o padrão de vida médio dos brasileiros, medido pelo PIB per capita, deve ficar praticamente estagnado pelas próximas quatro décadas, de acordo com uma projeção da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
A organização, conhecida como o clube dos países ricos, também estima uma queda no número de brasileiros ativos no mercado de trabalho e na taxa de ocupação do país nesse período. A pandemia afetou os planos da família de Vagner Benedito, 67. Agora ele vai ao Mercado Municipal de São Paulo, na região central da capital, em busca de peixes e pedaços de carne que seriam descartados pelos comerciantes.
Desempregado há mais de um ano, ele não consegue mais comprar comida como antes. “Venho da Vila Prudente [na zona leste] até a região central em busca de algo diferente para levar para casa. A gente prepara os alimentos com cuidado e não tenho vergonha de dizer que sigo vindo buscar doações, pela vida ter ficado cara demais. Tento não reclamar, mas não precisava ser assim.”
Apesar das dificuldades dos últimos meses, Benedito ainda diz acreditar que a vida pode voltar a melhorar. Ele tenta retornar ao mercado de trabalho, apesar de ver as poucas oportunidades que encontra serem preenchidas por candidatos mais jovens. “O que me move é o desejo de que minha filha, que desenha como profissional mesmo sem nunca ter estudado desenho, possa ter uma vida melhor.”
As estimativas mais recentes, de 2020, apontam que o aumento da fome também é preocupante, lembra Nascimento, com 55% da população vivendo em insegurança alimentar (sem ter garantia de que terá o que comer) e 9% com fome, uma situação que retrocede ao patamar de 2004. É como se tivessem ocorridos duas pandemias ao mesmo tempo: uma que serviu para destruir empregos de menor remuneração, rebaixar remunerações e afetar preços de produtos básicos para a sobrevivência dos mais pobres, enquanto outra que ajudou os ricos a ficarem ainda mais ricos.
Para Cardomingo, a saída da pandemia vai impor desafios ainda maiores que os anteriores, para a redução da desigualdade. “No mundo, o que se discute é uma ampliação de serviços públicos essenciais e isso se divide em identificar a importância da educação e também na de serviços de cuidado. Isso está ocorrendo tanto nos Estados Unidos, que agora falam em planos de zerar a pobreza infantil em um ano, quanto na Europa.”
“A nossa resposta deveria se dar por meio da reforma tributária, como parte do diagnóstico de que os super-ricos estão ainda mais ricos, enquanto os outros estão lutando pela sobrevivência na base, e os primeiros deveriam contribuir mais para a sociedade, pagando mais impostos”, defende Nascimento.