SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A proposta do governo para o Auxílio Brasil, programa substituto do Bolsa Família apresentado nesta segunda-feira (9), foi recebida com preocupação por especialistas em políticas públicas.
Eles concordam que o programa deve ser constantemente aperfeiçoado para reduzir a vulnerabilidade de famílias brasileiras, sobretudo após a crise provocada pela pandemia de coronavírus, mas chama a atenção deles a complexidade da proposta.
A medida provisória apresentada pelo governo federal inclui benefícios de primeira infância na mesma cesta de auxílio ao esporte escolar e iniciação científica e incentivos de inclusão produtiva.
Para Tereza Campello, que foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo da presidente Dilma Rousseff (PT), a proposta de Jair Bolsonaro (sem partido) não é de aperfeiçoamento do Bolsa Família, mas de destruição do programa.
“O Bolsa Família vem sendo melhorado ao longo dos últimos 18 anos. O que eles estão fazendo é destruir o programa, substituindo a sua essência por algo que nunca foi testado”, diz ela.
“Não dá para comparar com o programa em 2014 e dizer que ele está sendo ampliado, é preciso comparar com o que está acontecendo agora no Brasil -e são 39 milhões recebendo benefícios do governo federal.”
Campello acrescenta que a essência do Bolsa Família é ser um programa com foco e de simples entendimento, para facilitar a operacionalização com os municípios.
“O governo quer transformar um programa que é simples em algo complicado, desconjuntado e disfuncional.”
Um dos criadores do Bolsa Família, o hoje superintendente-executivo do Instituto Unibanco, Ricardo Henriques, também faz uma análise dura da forma como o governo tenta mudar o programa.
“Na época em que coordenamos o projeto, eram vários programas de transferência e era necessário criar uma lógica que alinhasse todos eles, para mitigar a pobreza e criar um vínculo de mobilidade social”, afirma ele.
Agora, o especialista avalia que a proposta do governo vai no sentido oposto.
“É um empilhar de agendas de quem não entende a complexidade da política social. É um ‘não programa’, impossível de executar. O segredo do Bolsa Família é ser preciso na sua estratégia.”
Henriques também considera improvável que o governo consiga avaliar a efetividade de políticas públicas tão distintas, como as de primeira infância e de desempenho esportivo, sob um mesmo guarda-chuva.
“Novamente, tem um amadorismo nisso que é próprio de quem não entende de política social e acha que empilhar coisas é suficiente para dar conta de vários problemas.”
Aumentar o orçamento do programa tem um grau de generosidade, que seria bem-vindo, já que a pobreza está mais alta do que antes da pandemia, lembra Marcelo Neri, diretor do FGV Social, na Fundação Getulio Vargas.
Ele pondera, no entanto, que o governo federal tenta lançar mão de fontes de financiamento questionáveis -como os recursos para pagamento de precatórios ou de privatizações- e que isso coloca em risco a sustentabilidade para os próximos anos.
“Não são fontes sustentáveis. O risco é entregar um reajuste generoso agora, como foi com o auxílio emergencial, mas isso não se manter lá na frente.”
Neri avalia que o programa vem sendo reajustado coincidindo com anos eleitorais. “Além disso, embora o governo não detalhe o que pretende, as novidades dessa proposta, como a bolsa científica e a de atletas, não devem ser de valores expressivos e nem beneficiar tantas pessoas”, afirma.
“Em um certo sentido, o programa existia antes do PT, mas a marca ficou mais associada aos governos petistas, e a mudança de nome faz parte da estratégia eleitoral. O que me incomoda é essa instabilidade nas regras e o amadorismo no desenho de algo tão importante para o país.”
Outro ponto da proposta prevê uma espécie de crédito consignado, em que beneficiários vão poder autorizar o desconto do benefício em favor de um banco em empréstimos, até o valor de 30% do benefício.
Coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV, Lauro Gonzalez teme que isso gere uma onda de endividamento das famílias mais pobres e que seja um desvio de finalidade do programa.
“Como boa parte dos beneficiários do Bolsa Família está na informalidade, seria mais interessante ter um programa de microcrédito, que promovesse a formalização ao longo do tempo.”
Ele também avalia que o microcrédito deveria estar acoplado à parte do programa que trata da inclusão produtiva rural e urbana. Da maneira como está proposto, diz ele, o auxílio de inclusão produtiva para quem comprovar vínculo de emprego formal parece ignorar a situação dos beneficiários.
“A maior parte dos beneficiários está em uma situação que os afasta da carteira assinada, seja por morarem em municípios com poucos empregos ou por terem ficado muito tempo na informalidade”, diz.