Enquanto o governo ainda tenta equacionar o orçamento do programa que sucederá o Bolsa Família, defensores públicos planejam usar uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) para pressionar o Executivo a expandir significativamente a agenda social no país ao pagar uma renda básica a 48 milhões de pessoas a partir de 2022.
A DPU (Defensoria Pública da União) formulou a proposta após o STF aceitar, em abril deste ano, um pedido da instituição para determinar que o governo implemente um programa de renda básica a partir do ano que vem para os brasileiros abaixo da linha da pobreza.
O pedido da DPU e a decisão do STF se basearam em uma lei de 2004 que cria a renda básica e determina que todo brasileiro deve receber o mínimo para despesas com alimentação, educação e saúde.
O texto jamais foi regulamentado e é isso que se tenta corrigir agora. A interpretação é que houve omissão do poder público na regulamentação, sendo que mesmo os programas formulados depois disso -como o Bolsa Família- não garantiram os direitos previstos.
“O Bolsa Família é um beneficio bem focalizado para as famílias mais vulneráveis, mas há uma promessa de que o Estado deve prover o mínimo necessário para as pessoas sobreviverem em seu território e o programa não é suficiente para cumprir essa obrigação”, afirma Ed Fuloni, defensor público que integra o comitê da renda básica da DPU.
O caso começou a ser discutido pela DPU ao defender a situação de um cidadão que afirmou precisar de recursos para sua existência digna.
Ele vivia em situação de rua, desempregado e com deficiência intelectual moderada. Recebia apenas R$ 91 do Bolsa Família após ter solicitado, sem sucesso, o BPC (benefício de prestação continuada, destinado a pessoas com deficiência e idosos carentes).
A DPU levou o caso ao Supremo apontando omissão do Executivo na regulamentação do programa de renda básica. A instituição chegou a pedir que o valor a ser pago aos indivíduos carentes fosse de um salário mínimo mensal até a regulamentação da lei.
Prevaleceu, no entanto, o voto do ministro Gilmar Mendes. O pagamento, cujo valor ficou a ser definido pelo Executivo, deve ser feito às pessoas em situação de extrema pobreza e pobreza, definidas como aquelas com renda per capita inferior a R$ 89 e R$ 178, respectivamente.
A linha da pobreza definida pelo STF é a mesma já usada pelo governo. O Bolsa Família chega a cerca de 15 milhões de lares.
Levantamento da DPU aponta que 48,8 milhões de pessoas no Cadastro Unico têm renda per capita mensal de ate R$ 178 (a pesquisa foi feita em março de 2021) e a Folha vem mostrando que há pessoas na fila de espera.
Na prática, o cadastro no programa mesmo conforme as regras não garante o acesso automático. O Ministério da Cidadania diz selecionar mensalmente de forma automatizada as famílias que serão incluídas para receber o benefício.
A DPU também calculou o valor a ser pago por pessoa -e não por família. Levando-se em consideração apenas a alimentação (tendo em vista que saúde e educação já são, em tese, fornecidas pelo poder público), a Defensoria calcula como valor justo R$ 480 por pessoa ao mês.
O valor é baseado em estudos do Banco Mundial sobre quanto é necessário para sair da pobreza, e fica abaixo da média de R$ 553 da cesta básica em 17 capitais pesquisadas em abril pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
A tarefa de colocar todos os interessados para dentro e pagar tal quantia, no entanto, causa um desafio colossal para os gestores públicos: o orçamento do Bolsa Família seria multiplicado por oito, de R$ 34 bilhões para R$ 281 bilhões.
O valor pode assustar, reconhece a DPU. Para amenizar o choque, os defensores pretendem reforçar nas discussões o exemplo do auxílio emergencial em 2021 -que colocou em prática a possibilidade de o país destinar volumes mais expressivos aos mais carentes.
O programa, que pagou entre R$ 300 e R$ 600 mensais (ou até R$ 1.200 para mães chefes de família), custou R$ 293 bilhões em 2020 e foi considerado crucial por especialistas para manter a atividade econômica durante a crise.
Estudo do Ministério da Economia apontou ainda que 72% dos lares recebedores do auxílio foram retirados temporariamente da extrema pobreza.
Mesmo assim, o programa precisaria ser manobrado para ser encaixado nas regras fiscais -sendo a mais evidente o teto de gastos, norma constitucional criada em 2016. Na visão da DPU, o melhor caminho seria retirar o programa do teto.
“Se for possível o Parlamento aceitar uma desvinculação do teto de gastos, não só possibilitaria um aumento mais robusto do benefício como seria uma solução mais definitiva”, disse.
Mas ainda restariam outras tarefas, como a compensação orçamentária para a criação de novas despesas e as próprias incertezas decorrentes de o país turbinar seu endividamento público.
“Sabemos que o cenário tem toda uma problemática”, reconhece Fuloni, que diz que o objetivo também é chamar a atenção para o debate.
“Em primeiro lugar vamos fazer isso via articulação do Executivo. Mas o que fazer depois, precisamos esperar como vai ser o desenho [do novo programa a ser apresentado pelo governo] e ver se vai ser cumprida a decisão”, disse.
O ministro Paulo Guedes (Economia) afirma que, por ele, o valor do Bolsa Família seria de até R$ 1.000. Mas que é preciso atentar para o equilíbrio das contas públicas -ponto em que, em sua visão, governos anteriores falharam.
“Não tenho dúvida de que, quando a centro-esquerda chegou e colocou nos orçamentos públicos os mais frágeis, isso foi um grande legado. Só que, como ela não soube manobrar isso orçamentariamente, fomos para dois surtos de hiperinflação”, disse ele na quarta-feira (7) no Congresso, se referindo a 1989 e 1994.
“É essa calibragem que estamos fazendo desde o início. O Bolsa Família eu queria que fosse R$ 500, R$ 600, R$ 1.000. Mas, se eu fizer isso, o negócio [inflação] vai a 5.000% e estraga tudo outra vez. Então temos que ir calibrando isso com cuidado”, disse.
Os números estudados pelo governo para a expansão do Bolsa Família até agora são mais tímidos.
O valor médio sairia de R$ 190 para algo em torno de R$ 250 e R$ 300 (por lar), e a cobertura passaria dos cerca de 15 milhões para até 18 milhões.