Tecnologia

Real Digital: conheça a moeda virtual brasileira

Banco Central (BC) anunciou na semana passada que lançou o projeto-piloto para o desenvolvimento da moeda

Depois do fenômeno do Pix, o Banco Central (BC) anunciou, na semana passada, o lançamento do projeto-piloto do Real Digital (RD). A ideia é que a moeda virtual seja um próximo passo para a tokenização da economia, ou seja, que a digitalização seja usada para que transações financeiras sejam mais ágeis, fáceis e baratas.

“Da mesma forma que o Pix reduziu os custos e democratizou o acesso a serviços de pagamentos, o objetivo da implantação do Real Digital é reduzir custos e democratizar o acesso a serviços financeiros – como crédito, investimento e seguros”, explicou ao BP Money o coordenador da iniciativa do BC, Fábio Araújo.

Segundo especialistas, não se trata de uma nova moeda mas, sim, da digitalização do nosso real existente. Tanto é que o Real Digital terá como lastro o próprio real, na proporção de um para um. O intuito é que, os códigos e algoritmos desenvolvidos façam com que as operações sejam mais seguras, rápidas e sem necessidade de intermediários.

A população não vê, mas quando uma compra ou transferência são feitas, ocorrem uma série de processos por trás para que, tanto o dinheiro, quanto a titularidade dos bens sejam movimentados de um lado para o outro. Com o Real Digital, será possível que essas trocas de informações sejam feitas de forma instantânea, sem a necessidade de intermediários, além de poderem ser fora do horário comercial e aos finais de semana.

“A gente está falando de um novo formato digital do real, que vai permitir ter todos esses valores movimentados dentro de uma nova estrutura muito mais eficiente do que a gente tem hoje. Isso significa que a gente vai ter uma maneira de promover operações que tenham troca de dados de forma instantânea. Isso permite, diferentes automações, como operações que envolvam internet das coisas, por exemplo, para fazer operações financeiras sem que precisem passar por diversos canais intermediários”, disse o sócio fundador da consultoria em inovação Spiralem e professor nos cursos de MBA da USP, Bruno Diniz.

O Real Digital é uma criptomoeda?

O Real Digital está sendo desenvolvido por meio da tecnologia blockchain, a mesma utilizada para a criação de diversas criptomoedas, como Bitcoin (BTC) ou Ethereum (ETH). Mas, diferentemente delas, o Real Digital é considerado um CDBC (Central Bank Digital Currency, na sigla em inglês). Ou seja, uma moeda virtual criada pelo Banco Central de um determinado país.

Justamente por ser criada por uma instituição pública, o Real Digital foge da categoria de criptomoeda. Isso porque, segundo especialistas, a premissa das criptomoedas é que elas não tenham um ‘dono’, o que vai na contramão das CDBC que são emitidas pelos Bancos Centrais.

“Quando a gente fala de criptomoedas, boa parte delas são de caráter privado. Quando a gente fala do Real Digital, ele tem essa característica soberana. A diferença é que nós estamos falando de uma moeda, de fato, que tem toda a garantia do regulador, assim como é o real tradicional que nós temos emitidos. Quando a gente faz a distinção, basicamente o CBDC preserva essas características do dinheiro como conhecemos”, explicou Diniz.

Além da emissão diferente, Araújo explica que as criptomoedas e o Real Digital atuam em nichos distintos. “Enquanto os criptoativos têm sido usados na economia brasileira principalmente como meio de investimento, o Real Digital está sendo desenvolvido para operar como um meio de liquidação segura de serviços financeiros digitais”, explicou.

Segurança da blockchain

Segundo o CEO da Bolsa OTC Brasil, Paulo Oliveira, a blockchain é uma tecnologia que funciona como uma espécie de cadeia de blocos. Esses blocos, por sua vez, dividem as informações em diversos computadores com o objetivo de tornar os dados mais seguros.

“Em vez de você ter toda a informação guardada em um único computador – com firewall e proteção para impedir hackeamento e invasão – você divide essa informação em pequenos blocos e distribui em toda a rede de computadores. Então cada computador tem um pedaço da informação que só pode ser acessado através de uma senha, de uma chave criptográfica. Por isso ‘cripto’ é o segredo, é a chave, que faz com que todos aqueles pedaços sejam reconstituídos e a informação seja recomposta”, explicou.

Na prática, a blockchain existe como um ‘livro-registro’ dependente entre si. Por isso, caso seja alterado, todo mundo vai saber. Isso porque é como se todo mundo tivesse uma cópia desse ‘livro’ no computador. Não é como se fosse um livro físico onde alguém pode chegar e apagar uma linha. Não há como alterar um registro sem modificar toda a cadeia de informações.

E essa informação da blockchain, por sua vez, está dentro de um token, ou seja, uma ficha de catálogo que contém todas as informações da transação, como o nome do comprador, vendedor, data de liquidação das contas bancárias e eventos que aconteceram dentro daquele contrato (smart controls). Tudo isso facilita o rastreamento das transações, identificação de erros e segurança, além de simplificar a troca financeira entre pessoas e instituições.

“Uma moeda digital tem muito mais facilidade de troca hoje do que o próprio papel moeda. Então o papel moeda está perdendo espaço. O Real Digital terá a facilidade de transferência porque agora não precisará existir fisicamente, Além disso, o Real Digital poderá  trazer aquelas informações do smart controls. E as finalidades do RD abre um leque de operações e funções na economia que hoje uma moeda tradicional não alcança”, disse Oliveira.

Projeto-piloto do Real Digital

O projeto-piloto da plataforma do Real Digital começou a ser desenvolvido no início de março em um ambiente colaborativo entre o Banco Central e um número limitado de entidades participantes do sistema financeiro interessadas no projeto.

“O ‘Piloto RD’, que já se iniciou internamente no BC, vai validar o uso de uma solução de Tecnologia de Registro Distribuído (DLT) na plataforma Hyperledger Besu, empregando um produto simples, a negociação de Títulos do Tesouro, para avaliar a programabilidade com ativos financeiros e a observância aos requisitos legais e regulatórios de privacidade na plataforma do Real Digital”, explicou o coordenador da iniciativa, Fábio Araújo.

Os resultados da primeira fase devem ser publicados no início de 2024 e, caso esses testes sejam bem-sucedidos, o ‘Piloto RD’ passará a uma segunda fase para a simulação de produtos mais complexos.

“Os objetivos estabelecidos para o desenvolvimento do Real Digital fazem que seja necessário se balancear entre três características fundamentais: descentralização, programabilidade e privacidade. Assim, o principal desafio é fazer uso de tecnologias que permitam efetuar a automação de serviços financeiros de forma menos centralizada sem pôr em risco a privacidade dos envolvidos”, completou.

Bancos tradicionais entram em cena

Desde 2018, a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) começou a coordenar grupos de trabalhos para a melhor compreensão do uso do blockchain para transações financeiras e os bancos passaram a aplicar estas tecnologias em casos específicos de uso.

Em 2021, a Federação começou a avaliar os diferentes casos de uso do Real Digital. Já em 2022, a Febraban participou do Lift Challenge, projeto do Banco Central que reuniu participantes do mercado financeiro para avaliar casos de uso da moeda digital. Segundo a federação, eles apresentaram um projeto de DvP direcionado a grandes transações no atacado.

Agora, em 2023, para auxiliar no no projeto-piloto, a Febraban criou um novo grupo de trabalho onde participam, incialmente, cerca de 15 representantes de bancos associados que focarão seus debates técnicos em questões como segurança, resiliência, interoperabilidade e escalabilidade da moeda digital.

“A tokenização da economia pode significar uma mudança muito significativa para o sistema financeiro, porque o cliente sai de um mundo onde está acostumado a ter dinheiro numa conta corrente e passa a ter dinheiro num token ou numa representação digital. Será uma mega inovação para o sistema financeiro, transformacional”, disse o diretor executivo de Inovação, Produtos e Serviços Bancários da Febraban, Leandro Vilain.

O objetivo das instituições é concluir a parte de testes até dezembro deste ano para que, até março de 2024, a população comece a participar ativamente. Contudo, há um ponto de atenção. Segundo o diretor Vilain, o Real Digital visa o pessoas jurídicas e, para pessoas físicas, é esperado que o mercado (fintechs, bancos e etc) desenvolvam seus produtos.

“Em um primeiro momento, o Real Digital provavelmente terá mais aplicabilidade para a pessoa jurídica. Não será utilizado em larga escala por pessoas físicas. O mercado ainda vai se desenvolver. O que estamos construindo é uma infraestrutura que permita a tokenização desses depósitos. E a partir daí, você abre um leque de oportunidades para outros produtos e serviços no sistema financeiro”, avaliou Vilain.

Para chegar ao acesso de pessoas físicas, o especialista em inovação Bruno Diniz explica que os bancos tradicionais entrarão em cena para criar seus próprios produtos. Com isso, o papel dos bancos ainda passará a existir, apesar de muitos “meios do caminho” poderem ser cortados.

“O Real Digital, como está sendo desenvolvido, vai ser utilizado em caráter de atacado. As instituições financeiras vão ter o Real Digital nos seus balanços e vão emitir o que a gente chama de stablecoin, que é uma moeda que vai ter como lastro o Real Digital. E é essa a moeda que os cidadãos vão poder utilizar no seu dia a dia. Porque, em outro cenário, caso o Banco Central emitisse uma moeda digital que o cidadão pudesse utilizar diretamente, ele poderia desintermediar totalmente os bancos, porque seria possível distribuir diretamente do Banco Central à população, que já poderia usar na outra ponta”, finalizou.